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O DESENCANTO NA FICÇÃO

(Sobre CONDUTA DE RISCO, filme de Tony Gilroy)

        “Já não era jovem, nem possuía bons pensamentos e sonhos agradáveis a respeito de si mesmo.” Estas são as palavras não de um, mas de dois personagens de Scott Fitzgerald (o escritor da era do jazz) – Dick Diver, em “Suave é a noite”, e Charlie Wales, protagonista do conto “Babilônia Revisitada”, uma das melhores narrativas curtas do autor. Usar as mesmas palavras em um conto e em um romance, talvez seja descuido, mas não obra do acaso. É o que conclui o professor e crítico de literatura norte-americano Harold Bloom, ao escrever sobre o escritor no livro “Gênio”. Afirma o crítico que o fato é explicável na medida em que a juventude de Fitzgerald, esplendidamente promissora – fez sucesso precocemente, quando, aos vinte e poucos anos, lançou seu primeiro romance, “Suave é a noite” -, declinou na meia-idade em virtude de seu alcoolismo e de sua estagnação estética - fatos que ganharam amplitude em função do colapso nervoso que sofreu sua mulher, Zelda Scott, colapso do qual nunca se recuperaria totalmente. Natural então que o autor sucumbisse a essa sentença autoexpiatória e nostálgica.
        Bons escritores tendem a, em poucas palavras, cristalizar dramas que evocam o universal, experiências vivenciadas por grande parte das pessoas; e é o que faz a bela oração de Fitzgerald, cujo significado ganha corpo no contexto das narrativas em que foram veiculadas. Hoje, quase setenta anos depois de ele escrevê-la, a frase poderia nomear com precisão a vida de Michael Clayton, personagem interpretado por George Clooney, no excelente “Conduta de risco”. O ator consegue trazer as telas a mesma sensação evocada pelas palavras do escritor norteamericano.
        O filme narra quatro dias na existência do protagonista, Michael Clayton, advogado de uma das maiores firmas de advocacia nova-iorquina - Kenner, Bach & Ledeen. Advindo de uma família de policiais – o pai aposentado e o irmão ainda na ativa -, aos cinquenta e poucos anos, Michael, ao longo desses dias, deixa transparecer que sua existência está longe de se configurar no que ele sonhava para si. Divorciado e endividado – o restaurante que abrira com Timmy, seu irmão mais novo, quebrou (o que faz levar o caçula de volta as drogas) -, Michael também não consegue livrar-se do vício - é um jogador de pôquer compulsivo. Afora isso, assiste sua carreira fracassar, pois, ao invés de tornar-se sócio da firma em que trabalha – é o que deveria se esperar em virtude dos anos que lá permaneceu – é relegado a um papel secundário; papel que, no jargão corporativo, poderíamos chamar de “faxineiro”: advogado responsável por casos emergenciais, situações nas quais sua função é gerenciar o inusitado (em geral acobertar atitudes ilícitas): avaliar riscos, o que pode ou não ser feito e delegar o caso para advogados especialistas.
        A abertura do filme é excelente. O que parecia ser um discurso (na primeira pessoa) quase esquizofrênico de Arthur Edens, um dos advogados da Kenner, Bach & Ledeen – colega e amigo de Michael -, vem, com o decorrer da película, revelar-se na verdade num insight de um homem lúcido, lúcido, porém dilacerado por uma situação que o leva aos limites de sua sanidade.
        Não bastasse o teor explosivo do filme; já no início dele há um diálogo, em meio a madrugada, entre Michael e um cliente “emergencial”, que é quase hipnótico; o tom de agressividade que o sustenta é eletrizante. O sujeito acabou de atropelar uma pessoa (que praticava jogging) e fugiu sem prestar socorro. Michael é chamado para resolver o imbróglio. A conversa entre eles é emblemática de nossos dias (ceticismo, ironia e sarcasmo, de ambas as partes, são recorrentes no diálogo) e do que advirá a partir daí. De um lado está Michael, calmo, ponderado, senhor da situação, tentando demonstrar que o sujeito está enrascado, e que o tempo, a fim de minimizar os danos do atropelamento, está contra o sujeito e não lhes permite divagações; do outro, o autor do delito, um empresário extremamente bem sucedido – é mostrada sua garagem com quatro carros, todos prateados: um Porsche, um Bentley e dois modelos Jaguar (com um dos quais ele cometera o atropelamento) -, mas completamente transtornado pelo ocorrido. Arrogante, o sujeito tenta, com argumentos pífios, justificar o atropelamento e sua fuga. Nem é preciso dizer que em nenhum momento, por parte de ambos, é demonstrada preocupação se o sujeito atropelado está morto ou vivo; é um número, um dado irrelevante; o importante é safar o infrator. Resolvida a pendenga, Michael é convocado para encontrar uma solução para o confusão provocada por seu amigo, Artur; confusão que é na verdade a trama principal do filme e algo bem mais complexo do que o atropelamento descrito na cena anterior. Arthur Edens vive uma situação paradoxal. Apaixona-se por Anna, filha do querelante que processa a US North, companhia que tem de defender. O querelante a processa por ter provocado a morte de seu filho, irmão de Anna – através de um câncer comprovadamente contraído pelo contato com o herbicida dessa empresa. Arthur é um brilhante advogado, mas sofre de transtorno bipolar e, em função do que vivencia, deixa de tomar seus remédios. Eis que, num depoimento onde tem de expor a defesa da US North, Arthur tira as roupas, fazendo desse gesto uma declaração de amor a jovem Anna (que está presente na sala). No dia seguinte, Michael é chamado para resolver o caso e mitigar a repercussão do conturbado gesto do amigo. Ao tentar defendê-lo bate de frente com Karen Crowder, a vice-presidente da US North. Ela quer que Arthur seja desincumbido do caso; Michael tenta defendê-lo, argumentando que foi um desequilíbrio momentâneo. Contudo, ao encontrar-se com Arthur, depara-se com o amigo completamente exasperado pela situação (afirma entre outras coisas que é “Shiva”, o Deus da morte, pois há anos vem defendendo “essa terrível cadeia de moléculas carcinogênicas”). Arthur está transtornado, irrequieto, mas convicto de que sua atitude estapafúrdia tem fundamento e, para piorar as coisas, recusa-se a retomar sua medicação. A partir daí, surgem suspeitas de que ele esteja reunindo provas contra a US North e que a processará, algo a que Michael deve dissuadi-lo de fazer.
        Há um belo momento no filme em que a narrativa deixa de evidenciar o trâmite entre os personagens (o ceticismo, o sarcasmo, a descrença no ser humano), para concentrar-se apenas em Michael. Ao voltar da mansão do sujeito cuja enrascada teve de acobertar, Michael, em meio ao amanhecer, pára seu carro na estrada que o levaria de volta a Nova Iorque (está em Westchester, subúrbio nova-iorquino). Pára porque avista três cavalos no alto de uma colina. Clooney, através de sua boa atuação, consegue representar o encantamento que os animais provocam no personagem, quase uma epifania. Poderíamos dizer que, ali, naquele momento, nos deparamos com as palavras de Fitzgerald (Já não era jovem, nem...), e é a grande metáfora da narrativa; a imagem dos cavalos, a beleza deles é o contraponto daquilo que Michael vivencia, do fracasso que sua vida se tornou: a falta de expectativa de uma vida próspera, o casamento arruinado, o filho a quem deve educar (mas cuja conduta profissional deve esconder, pois de maneira alguma lhe serve de exemplo), sua compulsão pela jogatina, o irmão drogado, etc. Enfim, nessa cena, ao aproximar-se dos cavalos, ao deparar-se com eles (e com tudo com que representam: liberdade, espontaneidade, altivez, destemor), Michael parece constatar que ele, ao contrário daqueles belos animais, vive enjaulado, encurralado em própria existência, incapaz de qualquer tipo de embevecimento pessoal. Acorrentado a uma vida que lhe é sofrível, vive preso as amarras e é incapaz de se libertar delas. De súbito, no sopé da colina, o carro de Michael explode, afugentando os cavalos e trazendo-o de volta a realidade.
        Não me estenderei aqui no que se refere ao desenlace do filme, respeitando aqueles que ainda não o viram (ou mesmo aqueles que querem revê-lo com algum tipo de expectativa em aberto), mas vê-se no final dele que a resultante de uma sociedade de indivíduos excessivamente especializados, e cujo senso moral comporta deslizes éticos, é, cedo ou tarde, jogá-los de encontro ao vazio, de encontro à perniciosidade de seus atos. É o que acontece com Michael, Arthur e Karen. Podemos concluir que “Conduta de risco”, apesar de possuir um viés excessivamente moralizante, não deixa espaço para o otimismo. Ao final da película, o espectador vê-se obrigado a concluir uma máxima freudiana: não existe civilização sem culpa. Os três protagonistas são dilacerados por ela. Mesmo numa sociedade pós-moderna, onde tudo é relativizável, onde um pragmatismo ultrautilitarista e neoliberal exige de seus indivíduos eficácia, precisão e objetividade (a qualquer custo) no exercício de suas profissões, esses não podem prescindir da ética em seus atos; correndo o risco de, ao desrespeitar essa premissa, tornarem-se algozes silenciosos de si mesmos.
        Contemporâneo de Scott Fitzgerald, Stephan Zweigh era amigo de Freud, Thomas Mann, Rilke e outros intelectuais. Escritor e filósofo austríaco, Zweigh teve de, em função de nazismo, exilar-se no Brasil em 1941, pois a crueza da realidade que assolava a Europa naqueles dias aparentava-lhe ser imbatível e irrefreável. Zweigh também viu sua juventude declinar em melancolia (como Michael Clayton, Scott Fitzgerald e seus personagens), pior, tornou-se um cético – é o que restava a pessoas de sua grandeza -, escrevendo em sua biografia que, em virtude das crueldades cometidas na guerra (Segunda Grande Guerra), passou a relativizar a importância da criação ficcional – constatação deprimente para um escritor, e que lhe inviabilizaria exercer sua profissão (viria a suicidar-se com sua esposa, em 1942, após fixar residência em Petrópolis, na serra carioca). Passados décadas desse pungente gesto de um intelectual brilhante, “Conduta de risco” destoa da maioria das produções levadas à tela, destoa porque faz-nos pensar que o papel da ficção, ainda nos dias de hoje – e talvez mais do que nunca -, não deva se restringir ao mero entretenimento, mas, sim o de cumprir com sua função civilizatória. Isso porque personagens como Michael Clayton, Karen Crowder e Arthur Edens, apesar de seres ficcionais, falam muito a respeito dos cidadãos que coabitam nas grandes metrópoles do planeta.

Ficha técnica:
Conduta de risco

Título Original: Michael Clayton
Direção: Tony Gilroy

Elenco:
George Clooney (Michael Clayton)
Tom Wilkinson (Arthur Edens)
Tilda Swinton (Karen Crowder)
Sydney Pollack (Marty Bach)