HOME


livros - individuais  |
O GIRASSOL NA VENTANIA
Para Luiz Fernando Esser

“Cego às culpas, o destino pode ser impiedoso
com as mínimas distrações.”
O Sul, Jorge Luis Borges
AMÍLCAR, ARIEL E EU


        Lá em casa, tem uma foto que é o rosto da minha adolescência, minha e a de meu irmão. Toda vez que eu entro na sala, é a mesma coisa. Tão logo alcanço o patamar da escada, vejo a imagem e me detenho a observá-la. O Ariel está com o braço erguido, segura uma garrafa plástica no alto e o Amílcar tenta abocanhá-la. Ele está pulando, suspenso no ar; a boca aberta exibe seus caninos salientes, e a cabeça dele quase ultrapassa a altura do meu irmão. Na foto, em segundo plano, também estão o pai e a mãe. O pai a abraça, e a mãe está sorrindo. Vê-se sua boca bem desenhada, seus dentes perfeitos, seu rosto delicado; o pai também sorri, mas é um sorriso comedido. Ele, ainda de farda, tem seu queixo levemente erguido. Sempre nos disse para nos portar assim: a cabeça erguida e os olhos acima da linha do horizonte: “Os olhos, Arthur e Ariel, sempre acima do horizonte. Sempre.”
        O passado é uma pedra. Aquilo que fazemos, irreversível; o que deixamos de fazer também, e Deus parece não perdoar descuidos. A foto me faz lembrar o que aconteceu, pois foi tirada dias antes daquela tarde de março, tarde inesquecível. Eu havia ficado furioso com meu irmão, com raiva por ele ter sido tão negligente. Contudo, após o que se sucedeu, me senti na obrigação de perdoá-lo. O Ariel, tanto quanto eu, nunca foi de pedir desculpas, mas me falou algo, à noite, que era como se o fizesse: “Arthur, você sabe que foi sem querer, e que mesmo você poderia ter cometido aquele erro”.
        Amanhã, irá fazer doze anos do que ocorreu naquele verão. Lembrei-me da data porque faltava exatamente uma semana para o meu aniversário – completarei vinte e nove anos. Ontem à noite, ao folhear um dicionário de provérbios na casa do Adriano, um ditado hassídico me remeteu àquela ocasião. Li-o três vezes para não esquecê-lo. Ele dizia o seguinte:
        
Às vezes, a vida corre sobre o fio de uma navalha, de um lado o inferno, do outro também.

(Leia esse conto na íntegra no livro “O girassol na ventania”.)