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AMOR POR UM TRIZ
"E eu que não sabia que o amor requer vigília."
Raduan Nassar
        Viver dia após dia uma mentira é exaustivo. Amo Isadora; sei que ainda a amo. Mas, às vezes, sinto como se vivêssemos um equívoco. Ontem, novamente discutimos; o motivo, dada a proximidade de seu aniversário, o mesmo do ano passado: Isadora quer um filho; eu acredito que não seja o melhor momento para tê-lo. Hoje, ao nos despedirmos no aeroporto, ela chorou mais uma vez. Era como se soubesse que me manteria inflexível. Seus olhos pareciam me dizer: “Gabriel, conceda isto por nós, pelo nosso amor”. Minutos após deixá-la no portão de embarque, enquanto dirigia para casa, me emocionei. Comovi-me a ponto de parar no acostamento para que pudesse me acalmar. Imaginei nossa separação. Senti uma angústia tão intensa que acabei dando um soco no teto do carro. Soqueei com tanta força que o golpe provocou um corte em minha mão.
        Como não sofrer após doze anos de relacionamento?
        De que maneira, depois de tanto tempo juntos, não sentir uma ruptura dessas como uma espécie de luto?
        Às vezes, tenho a sensação de que vivemos uma eterna metáfora e somos, todos, feitos de ilusão. É como se a vida, em um momento posterior, pudesse ser passada a limpo. Sei que isso não é verdade, e que seremos sempre rascunhos de nossos ideais.
Ontem à noite, Isadora foi enfática, arbitrária como poucas vezes a vi ser. Falava e chorava ao mesmo tempo. Era impossível não perceber a que custo ela tomou essa decisão. Trinta e sete anos. Ela tem razão. Daqui a pouco, esgotará seu limite biológico para engravidar. Ontem, Isadora deu o prazo de sua viagem para que eu me decida. Assim que ela voltar de São Paulo, tenho de escolher se fazemos esse filho e continuamos nossa relação ou nos separamos em definitivo. À noite, após ela me revelar sua decisão, perdi o sono. Assim que ela adormeceu, liguei o computador e, em meio aos meus escritos, encontrei um poema. Havia-o iniciado dois anos atrás. Reescrevi-o e, depois de terminá-lo, reli várias vezes. Triste demais, amargo demais, mas são minhas palavras, é aquilo que penso, refleti. E ainda que, ao relê-lo, tivesse hesitado em dar a ela, transpus para um cartão e coloquei-o dentro do “Ana Karenina”, livro que comprei para presenteá-la. Após embrulhá-lo, me deitei e, ainda assim, estava sem sono. Tentei ler um pouco; não consegui. Sob a luz do abajur, durante um bom tempo, fiquei admirando seu rosto enquanto dormia. Vi a mesma beleza com a qual me encantei logo que a conheci, a mesma mulher por quem me apaixonei anos atrás. Horas antes, ao discutirmos, Isadora havia chorado; chorou tanto que, mesmo dormindo, vez em quando, suspirava. No meio da noite, como sempre faz, colocou seu braço em volta de meu peito, me beijou a boca e voltou a dormir. Eu, a fim de tranquilizá-la, segurei sua mão.
        “O que fazer? O que devo fazer?”, lembro ter perguntado a mim mesmo ao admirá-la.



Porto Alegre, 16 de Agosto de 2005.



Gabriel Cortese, após digitar as últimas palavras, salva o arquivo, desliga seu notebook e tenta dormir. Sente-se cansado. Na noite anterior dormira pouco. A discussão com Isadora o deixa preocupado. Tem quatro dias para decidir o seu futuro e o dela. Quatro dias.

(Leia esse conto na íntegra no livro “O girassol na ventania”.)