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TUDO POR ACASO, NADA POR ACASO
        Porto Alegre é uma mulher, uma velha senhora de duzentos e trinta e poucos anos de idade. A cidade, se vista através de um mapa, assemelha-se a uma mulher, ao perfil de uma mulher. Ela enxerga o Guaíba; seu rosto, em direção a oeste, está voltado para o rio, como se o admirasse. Só é preciso visualizar o mapa da cidade (à la Mário Quintana), atiçar a imaginação e... Veremos o rosto.
        A capital gaúcha é um emaranhado de ruas, prédios, carros, homens, seus projetos pessoais e seus segredos. Como qualquer outro centro urbano é, na verdade, um gigantesco organismo composto por muito daquilo que não é visível. Ao transitarmos por suas calçadas, por suas praças, raramente imaginamos o que se esconde sob nossos pés. Dutos, câmaras, cabos de fibra ótica, canais de esgoto, redes pluviais e uma infinidade de elementos correm por toda a cidade fazendo com que o solo abaixo de nós se configure num labiríntico entrelaçamento de sistemas.
        Poderíamos também afirmar que, assim como qualquer cidade, as pessoas são muito daquilo que não deixam transparecer. E todas, sem exceções, possuem segredos; alguns inimagináveis, inconfessáveis, outros nem tanto. Muitos deixam de sê-los, vem à tona, espalham-se como fantasmas e, embora mais leves que o ar, pesam em suas mentes como chumbo. Ao tornarem-se públicos, contem verdades tão sofríveis a respeito delas que algumas se vêem obrigadas a trocar de cidade, quando não de país, nome e identidade. Amores malogrados, brigas familiares, dívidas impronunciáveis, são alguns dos fatos que as fazem agir assim. Arranjam mil e um argumentos a fim de dissimular tal atitude (muitas vezes para si mesmas), como se, ao procederem dessa maneira, pudessem afugentar o que de fato as atormenta. Vivem um autoexílio sem admitir; viajam centenas, milhares de quilômetros na vã esperança de dissipar seus fantasmas; algumas sem ao menos cogitar que o que de fato tem relevância em nossas existências (não importa onde estivermos) reside, invariavelmente, nos vinte e poucos centímetros existentes dentro de nossa caixa craniana.
        Outros segredos, menos aflitivos, mas não menos importantes, são tão bem guardados em nossas mentes que acabamos por esquecê-los. Todavia, invisíveis tais como redes subterrâneas, continuam lá, a estruturar nossas existências e determinar nossas rotas sem nos darmos conta disso. É como se diariamente vivêssemos hipnotizados por um exímio mágico e a cidade fosse o palco onde assistimos seus truques e suas artimanhas. Nesse ínterim, os anos se sucedem, camadas de memória vão sendo sobrepostas e o tempo vai esculpindo corpos e rostos, subtraindo-nos, dia após dia, a juventude. A isto, comumente, chamamos vida, nossas vidas.
        A bem da verdade, uma única coisa é certa se tratando de homens, segredos e cidades. Os homens passam, os segredos se dissipam, as cidades permanecem.

        É em Porto Alegre que a nossa história se sucederá. Nela, um homem e uma mulher, seus projetos pessoais e o que carregam sigilosamente em suas mentes se encontrarão, e... Bem, vamos à nossa história...

(Leia esse conto na íntegra no livro “O girassol na ventania”.)