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O VELHO, O MENINO E O CASARÃO
        Às costas de Sérgio, uma tromba d’água se avizinhava, e os trovões caíam a esmo, arranhando a carranca do céu escuro. A natureza eclodia, berrava. De vez em vez, o cavalo relinchava e, alheio às rédeas, buscava a proximidade de um capão: avisava a tempestade ou algo pior. Sérgio tentava amainar o temor do animal dando pequenos tapas em seu pescoço, a voz acompanhando o gesto, conversando manso com ele. Mentia. Na solidão dos seus treze anos, dia, noite e temporal no mesmo céu, também tinha medo. Não havia como fugir do que pensava. A história do peão que morrera alvejado por um raio tomava-lhe a mente de assalto.
        Diz de uma feita que um capataz voltara para a fazenda já noite fechada. Irreconhecível, montava seu tordilho, o corpo duro e chamuscado, os olhos abertos à eternidade e a fumaça saindo dos cabelos qual fogueira moribunda. Era de assombrar. Ver o homem seco, imóvel, uma estátua de carne e osso; ver aquele peão, que, sorridente e brincalhão, sempre estivera na lida, firme e forte. Quem viu não esqueceu; quem assistiu tinha de contar. Como uma aparição, o vivente surgiu calado no meio do breu, cumprimento nenhum, o rosto um carvão só, riscado da terra como um fósforo. Morte assim faz história, atravessa gerações, serve de aprendizado. E o avô de Sérgio não cansava de lhe repetir o causo, tão logo um trovão rachasse o céu. “Para morrer, basta estar vivo”, concluía o palavreado.
        A passos largos, feito um ciclope silencioso, a noite se aproximava. Naquele final de tarde, durante um bom tempo, Sérgio cavalgou sem avistar uma viva alma, fazenda, galpão, fumaça, nem um traço humano, nem galo nem perdiz, nem um cusco sequer. Ele e o cavalo, sozinhos, na imensidão do pampa. Fugindo da chuva, os raios em seu encalço, Sérgio mal sabia, mais se distanciava da estância - o medo, como sempre, a atrasar o destino de um homem. De súbito, como que brotando dum manantial, viu, lá longe, num sopé, dois peões, uma pequena boiada e, aos latidos, três ou quatro guaipecas corrigindo os desgarrados. Temeroso de reproduzir a morte do peão alvejado, nem pestanejou. A galope, tomou o prumo do que mirava.
        “Te perdeste, guri?”, falou um dos peões, bastou Sérgio se aproximar. Os cuscos latiam para o forasteiro.
        “Mais ou menos”, Sérgio empostara a voz num tom grave; tentava envelhecer.
        O homem mais próximo a ele deu uma gargalhada.
        “Mais ou menos... Essa é boa”, disse em voz alta. O outro, à sua direita, riu também. A cachorrada não parava de latir.
        “O vivente é da cidade, não?”, falando sempre o mesmo, que o parceiro não era de muita prosa. Seu timbre era jocoso e, após falar, deu um relhaço no ar, fazendo os cuscos calarem a boca.
        Sérgio não gostou das risadas.
        “Do mundo”, respondeu.
        “Mas, tchê, o guri é ligeiro”, falou o mesmo. “Filho de quem?”, perguntou.
        “Do meu pai”, Sérgio retrucou irritado.
        “Novidade... E eu de uma égua renga.” Novas gargalhadas.
        “Não é tão ligeiro assim”, o outro abrira a boca, atiçando o guri. Cutucara o parceiro.
        “É, pelo visto me enganei... Fazenda de quem, guri?”
        “Do Gutierrez, Sérgio Gutierrez, meu avô.”
        “Ah, bueno... Do compadre Gutierrez... Mas o Gutierrez é patrício mui guapo, mui astuto; naquela fazenda, até os cuscos tocam gaita. Não era para ter neto assim, aparvalhado, se perdendo por aí, feito bêbado em chinaredo.”
        “Cavalo novo”, Sérgio argumentou.
        “Cavalo novo e homem tonto”, falou o de sempre.
        “Barbaridade... Não judie do guri, compadre”, o outro peão interpelou.
        “Cavalo novo e homem tonto, se o senhor montasse nele”, retrucou Sérgio.
        “A la pucha... O homem está nos cascos”, comentou o que o defendera.
        “Eta”, exclamou o outro. “Mas o guri aqui é um Gutierrez mesmo. Gostei de ver... Chucro, qual potro em temporal... E, falando nisso, guri, daqui a pouco um aguaceiro vai cair por estes pagos. É bom o chiru se avivar, voltar para as tuas bandas ou buscar abrigo, algum capão, uma figueira alta ou o que valha. Falo sério... Deus joga água e raio onde quiser e, no descampado, tem boa mira.”
        “A la pucha”, repetiu o outro. “Essa eu vou anotar.”

(Leia esse conto na íntegra no livro “O girassol na ventania”.)